Sessão com Paulo Manzato, VP Sales at Talkdesk, mentor BayBrazil – abril de 2021
História e missão do Clubinho Preto
A empresa foi selecionada para o programa de Impacto BayBrazil e, de abril a agosto de 2021, participou de sessões de mentoria com mentores da rede BayBrazil.
A fundadora reflete sobre o propósito do Clubinho Preto e conta como o programa BayBrazil contribuiu para a evolução da empresa e modelo de negócios.
Clubinho Preto aposta na educação como arma contra o racismo
O racismo estruturado na sociedade é um dos maiores desafios para o Brasil, ainda sob o jugo de pensamentos de classes dominantes herdados da época da escravatura e que permanecem nos dias de hoje sob diferentes vernizes e manifestações. Ora mais sutil, ora mais direto e contundente.
Quando a carioca Talita Peixoto, fundadora e CEO do Clubinho Preto, trabalhava na área comercial e se formou professora universitária, pensou em fazer doutorado na área de marketing e empreendedorismo. Durante as aulas, os alunos começaram a trazer questões sobre discriminação racial e tudo o que sofre a sua influência direta ou indireta, como os produtos voltados a este mercado.
Não demorou para perceber que seus alunos negros se sentiam mais confortáveis em discutir essas questões com ela. E foi a partir dali, discutindo sobre consumo, que a Talita começou a perceber que era de fato um assunto a ser pesquisado.
“Na minha vida profissional eu senti a discriminação de uma forma sutil. É muito parecido com a questão de carreira para a mulher. Quando eu estava imersa naquele universo, no início, eu achava que bastava eu me esforçar que daria certo, em função do meu currículo e de tudo que eu tinha desenvolvido. Achava que as coisas iriam acontecer em algum momento. Depois eu comecei a achar que era por ser mulher. Mas o tempo foi passando e eu comecei a observar que a raça, assim como o gênero, também influencia”, conta Talita.
Algo muito sério a instigava, ao ver outras mulheres conseguindo oportunidades que ela não conseguia, em que pese as suas qualidades.
“Eu comecei a observar que, muitas vezes, o meu currículo era melhor. Mas o que eu dizia não era muito bem aceito ou quando eu passava a minha idéia para outra pessoa, a minha idéia era aceita. Não era aceito quando vinha de mim. São coisas que a gente vê no mercado, que acontecem entre homens e mulheres, mas que acontecem por questão de raça também”, diz.
O clique para Talita dar uma guinada em sua vida veio de uma observação incomum, feita por alguém que ela até então não conhecia.
“Eu sempre usei o meu cabelo crespo e cacheado. Em 2010, em todos os lugares que eu ia profissionalmente, ninguém tinha cabelo crespo. Eu trabalhava em uma multinacional e veio uma colombiana, que morava em Houston, e quando ela me viu ela me disse: ‘Nossa, o seu cabelo é tão lindo. O meu cabelo natural é igual ao seu.’ Mas o cabelo estava liso e escorrido. E ela continuou: ‘Eu gosto, mas quando eu me vejo, I look like a beggar (Eu pareço um mendigo).’ Ela disse na minha cara. Vem de uma mulher. E se ela, que tem o mesmo tipo de cabelo, estava pensando isso, imagine o que as pessoas brancas não pensam?”, questiona.
No ambiente corporativo, destaca Talita, isso é muito pior porque tem homens e tem mulheres brancas.
“O negro é associado àquela pessoa que não estudou, ou que não avançou, e isso acompanha a gente a vida inteira”, afirma.
Foi a partir destas vivências que Talita começou a gestar o que viria a se tornar o Clubinho Preto. Muito mais que um clube de assinaturas para crianças com material educativo, que inclui uma caixa com um livro com a temática afro e um outro item variado (pode ser shampoo para cabelo crespo, camiseta com frases motivacionais, etc), trata-se de uma forma de ampliar o debate sobre um tema ainda desafiador dentro da sociedade brasileira.
“Por meio de um programa, conseguimos uma sala privativa durante um ano, em um coworking. E nesse espaço, de forma sutil, já sofri discriminação racial, porque as pessoas não acham que eu sou professora universitária, que faço doutorado, que eu sou empreendedora, que tenho uma startup. Infelizmente sempre vão associar características negativas. Essa é a realidade do nosso país”, diz Talita.
A fundadora do Clubinho Preto lembra que a sala de aula foi lhe mostrando que os alunos se apoiavam muito em sua trajetória e afirmativas para poder buscar esse tipo de conhecimento.
“Acho que eles não se sentiam confortáveis em perguntar e questionar. Além disso, vários alunos já tinham relatado que sofriam racismo no trabalho. Ainda antes de empreender, eu pensei naquele momento que, quando eu fizesse um doutorado, iria me envolver em algo com esse propósito.”
Esse propósito foi o seu grande ponto de virada, ao mesmo tempo em que lhe abriu os olhos sobre o seu verdadeiro público-alvo.
“Fui pesquisar sobre consumo e raça. E comecei o doutorado pesquisando o consumo de pessoas negras. Então, a maternidade chegou para mim e me mostrou que não era para pesquisar o consumo de pessoas adultas. A grande sacada é a gente começar a trabalhar isso na infância. Eu tenho 41 anos e sou negra, mas eu tenho uma pele um pouco mais clara. É o que a gente pode chamar de parda. E têm pessoas com traços retinta, com traços mais negróides, cabelos mais crespos. Se você perguntar para essas pessoas sobre a questão racial, elas vão dizer que mais recentemente é que começaram a entender. Assim como eu. Teve um avanço, mas tem muito o que avançar”, comenta.
Para Talita, o grande diferencial está em mudar o modo de agir e como realmente implementar políticas transformadoras nesta área.
“A gente começa a discutir essas questões na fase adulta, com 30 e 40 anos, quando o correto seria começar ainda na infância, na escola, em casa – tanto negros como brancos. É um tabu porque as pessoas não sabem se podem falar e o que os outros vão achar.”
A urgência da educação antirracista
A idéia do Clubinho Preto, conta Talita, começou pela educação do filho e no compartilhamento de experiências com outras crianças negras.
“Foi aí que a gente entendeu a urgência da educação antirracista. A gente só vai poder esperar uma mudança no comportamento das próximas gerações se a gente começar agora. Se eu tivesse tido, na infância, as informações que eu tenho hoje, a minha própria trajetória teria sido diferente. Eu teria mais conhecimento para entender e resolver esse tipo de problema que, lá atrás, eu nem entendia direito o que eu estava passando.”
A importância, segundo ela, reside em olhar para a infância. E deste olhar para o pequeno Tales, então com 4 anos, e do olhar para tantos outros “Tales”, é que o Clubinho Preto consolidou-se.
“Tudo começou na pandemia. Em 2020 seria o meu ano de qualificação do doutorado. Eu não tinha tempo. Quando veio o decreto com restrições de circulação, com o fechamento das escolas, eu achei que não iria conseguir me qualificar naquele ano, porque com uma criança pequena em casa é muito difícil. Tem uma carga de leitura e pesquisa muito grande, você precisa ter horas de concentração. Eu não iria conseguir ler 10 minutos. Eu já tinha pensado no Clubinho Preto e conversei sobre isso com pessoas que se tornaram nossos fornecedores para a partir daí alavancar o nosso projeto.”
Naquele momento de tantos questionamentos, desde aqueles que são impostos pela maternidade às incertezas provocadas pela própria pandemia, Talita pensou: “Não é só meu filho que está em casa. Muitas crianças vão estar em casa, e como vai ser isso?” Foi então que ela chamou a Katiúcha Watuze, que é a CMO do Clubinho e parceira desde quando o plano estava em gestação, 2019, e selou com ela o compromisso de materializarem o projeto.
“Começamos a trabalhar marca e engajamento nas redes sociais para vender dali 5 ou 6 meses, quando a gente imaginava que a pandemia iria acabar. Mas no segundo post que subimos no Instagram já vieram pessoas interessadas em assinar. Nós tínhamos 300 seguidores e as pessoas já pediam para assinar. Em abril do ano passado, fechamos 10 assinaturas e entregamos mesmo com tudo fechado”, relembra.
Com receio de prejuízos à marca em função das barreiras sanitárias, Talita restringiu o Clubinho inicialmente apenas para assinantes que eram da cidade do Rio de Janeiro.
“Eu fiquei com receio de não conseguir receber os produtos de quem estava fora do Rio, e de mandar as caixas para os assinantes”, explica.
O kit do Clubinho consiste de um livro infantil (de 0 a 10 anos) e um outro item.
“Mandamos shampoo em barra para cabelo crespo, que é natural, e roupa com frases de Martin Luther King Jr. ou outros personagens negros. Já mandamos jogos da memória, quebra-cabeça, e boneca negra, mas sempre com temática antirracista e afrorreferenciadas”, detalha.
Entre os livros que fizeram parte do kit, Talita destaca “Maira – A alegre campeã”, que é uma autobiografia de uma atleta de tênis de mesa.
“É um esporte de tradição asiática e a Maira foi a primeira campeã brasileira negra de tênis de mesa. A história é o que a gente reforça como negritude positiva, porque ela vem de uma família de classe média, do Sul. Ela conta sobre a família, que gostou do esporte, conseguiu treinador e patrocínio, até que se tornou campeã. Isso é bom porque nas histórias, nos livros, nos desenhos e em todos os lugares as referências que as pessoas têm é de uma família negra desestruturada, que não tem pai ou que o pai é violento, a mãe é problemática, as crianças não são bem retratadas. Então, a gente traz essas referências positivas para as crianças. Esse livro é a questão da representatividade”, destaca.
Outro livro especial é Nuang – Caminhos da Liberdade.
“Esse livro é lindo e as ilustrações são maravilhosas. Conta a história de uma menina africana que tinha muita convivência com a avó, e ela tinha medo de trovão. O livro conta o que realmente aconteceu com o povo, que foi escravizado, mas de uma forma bem sutil. Ela estava com outras pessoas quando todos foram raptados, entraram num barco e foram parar num outro lugar, e nesse outro lugar ela tinha que trabalhar e ficou triste. Só que ela lembrou que a avó tinha uma receita de uma vela que fazia a pessoa má dormir, por conta do aroma. Então ela seguiu e assim vai libertando o povo dela. Uhuru significa liberdade. O livro diz que até hoje eles estão buscando a liberdade.”
Sessão com Isabela Freire, Stratetegi Finance, SoFi, Stanford Univeristy, mentora BayBrazil – junho de 2021
Apoio da BayBrazil
Em outubro do ano de 2020, Talita já havia apresentado o Clubinho Preto no Shark Tank Brasil, que é um reality de empreendedorismo.
“A gente estava buscando projetos de aceleração, incubadoras que entendessem o nosso propósito. Eu estava buscando um ecossistema onde esse impacto que a gente propõe seja entendido e tenha valor, não só do ponto de vista do investimento financeiro.
Na seletiva da BayBrazil fiquei muito feliz porque tinha uma mulher negra na banca, que é referência para mim, que é Leila Velez, do Beleza Natural. Eu sou administradora e o Beleza Natural, que é um case de sucesso, de pessoas negras e bem-sucedidas, voltado para consumidores negros”, diz Talita.
Quando a Leila e outras pessoas fizeram perguntas e tentaram entender o propósito do Clubinho, Talita afirma que foi muito importante.
“Isso deu a tônica do que ia ser esse programa pra gente. Todos os mentores pelos quais passamos são maravilhosos. Houve uma conexão muito boa, porque nem sempre a gente encontra pessoas com esse olhar e entendimento do que estamos propondo.”
De acordo com Talita, essa percepção da BayBrazil ajuda muita gente a desenvolver o seu negócio.
“Infelizmente já passamos por situações em que a gente tem que explicar algumas coisas. Tem gente que diz: ‘Ah, vocês não podem fazer isso porque estão segregando.’ Isso é difícil de quebrar. Nós temos números mas, às vezes a gente se depara com esse tipo de questionamento. Na BayBrazil vimos os mentores apoiando, querendo entender, de coração aberto e de mente aberta para entender o que estamos fazendo, para apoiar e direcionar. Os mentores questionam: ‘Já pensou nessa saída? Já pensou em outra saída? Por que está tendo esse tipo de problema? E se você fizesse isso?’ São extremamente técnicos, mas embasados e com um olhar empático.”
Talita diz que agora o foco maior do Clubinho está no e-commerce baseado em B2B (business to business).
“Isso foi algo que os mentores BayBrazil nos mostraram desde o início. Teve um workshop que foi maravilhoso, falando sobre vendas B2B e abriu os nossos horizontes. Nós já fomos procurados por algumas empresas, mas estávamos olhando muito para o B2C (transações entre empresas e consumidores), e não enxergávamos essa outra possibilidade. Através da BayBrazil, a gente começou a entender que isso realmente é importante e a gente precisa ter foco, criar essa relação, buscar empresas, para poder desenvolver esse trabalho”, diz Talita.
O Clubinho Preto está se estruturando melhor, sempre um passo de cada vez, de forma consciente, como enfatiza Talita.
“Estamos participando de um programa chamado ‘O Amanhã é Delas’, oferecido para 10 startups lideradas por mulheres. Nesse espaço a gente tem a estrutura de uma empresa de fato. Chegou uma CTO, que é uma professora negra, amiga minha da faculdade, e estou contratando uma estagiária”, diz Talita.
Com 110 assinaturas no Rio de Janeiro, o Clubinho Preto pretende atender todo o Brasil e outros países do mundo. Talita conta que a startup está crescendo gradativamente, e lembra que no início o dinheiro das assinaturas custeava apenas a embalagem e o segundo item. O livro era consignado.
“Não passamos nenhum mês no vermelho”, comemora.
Talita conta que o apoio de uma mentora na área de gestão financeira foi fundamental pra quebrar crenças limitantes.
“A gente achava que os brasileiros não tinham dinheiro para comer, porque a situação do país estava muito difícil. Mas a maioria dos mentores BayBrazil está fora do País e tem outra visão. Eles nos mostraram que tem gente querendo ajudar e que não podemos desistir porque alguém vai nos apoiar, já que a educação antirracista é muito importante. E nos encorajou”, relata.
Plataforma gameficada
Talita lembra que ao chegar à BayBrazil já havia uma idéia de colocar o Clubinho Preto em uma plataforma gameficada.
“Mas a plataforma era para os assinantes. Agora a gente entendeu que pode oferecer essa plataforma gameficada B2B. Entendemos que essa é uma possibilidade que a gente não estava vislumbrando. A BayBrazil nos mostrou o caminho. Entendemos que um investidor anjo precisa estar de acordo com o que a gente gostaria e com o impacto que a gente pode oferecer. Entender e reavaliar pivotando, por causa dos insights e do que a gente vem aprendendo com a mentoria da BayBrazil, e o mais importante é que o ecossistema americano, que está há alguns anos na nossa frente. E, em termos dessa diversidade racial, que é o que toca no nosso propósito, isso também é muito importante.”
A empreendedora ressalta que todos os insights obtidos com os mentores da Bay Brazil, que incluem as empresas de grupos minoritários, as startups de grupos minoritários, estão acontecendo.
“Parece que os mentores apresentados pela BayBrazil estão enxergando os nossos próximos passos, o que nunca aconteceu em outros programas. Antes, parecia que as pessoas não enxergavam o passo que a gente podia dar para crescer. Na BayBrazil, eu vejo as contribuições nesse sentido, de enxergar onde a gente podia chegar dando o próximo passo.”
Segundo Talita, os mentores que vivem nos Estados Unidos também mostraram que os debates sobre a questão racial voltaram a ganhar força após o assassinato de George Floyd. O movimento “Vidas Negras Importam” deu uma chacoalhada para as pessoas entenderem a proposta e as empresas começaram a fazer ações concretas.
“Se uma empresa deu o passo a frente, outras também vão dar. Não vai ficar só na questão de marketing, porque vão ver resultados concretos, assim como as empresas americanas”, afirma.
Além disso, Talita gostou que startups de diferentes patamares participaram juntas do programa BayBrazil.
“Isso ajuda muito. A gente olha quem está à frente e tem outra visão, aprende como se apresentam, o trabalho que desenvolvem. Tudo isso inspira a gente também, porque eles deram outros passos que a gente ainda não deu. Isso foi bom. No início achei que isso seria ruim. Achava que iriam olhar só para quem estava em série A. E não. Muito pelo contrário. Todos os mentores que passaram fizeram contribuições para todos nós, independente se um captou R$ 3 milhões e outro não captou nada. Isso ajudou muito”, declara.
Texto: Rita Fernandes, BayBrazil